domingo, 15 de julho de 2007

A Doceira


De cabelos encaracolados com um tom esbranquiçado, que alegrava-se em meio à manchas de uma cor que não negava a usa idade – mais ou menos situada na casa dos 70 – o cabelo de Dona Criméia parecia “papel de avaliação de Geografia”, diziam as crianças da rua, comparando o cabelo da senhora doceira com a prova mimeografada que Dona Geni aplicava na escolinha de 1ª à 4ª do Bairro. Não falavam por maldade, conheciam Dona Criméia a menos de dez anos.
Dona Criméia fazia doces. Composta das mais variadas frutas e geléias que brilhavam como pedras preciosas derretidas, até adquirirem a forma e a consistência de uma pasta, se é que isso fosse possível. Sua profissão era essa, e também uma de suas famas. Como era famosa no bairro Tucurumin!
Suas compotas tinham um alto valor, afinal, “trabalho artesanal tem de ser valorizado!” – dizia ela. Porém, todos sabiam que não era só por isso. Como única coisa que sabia fazer, mantinha-se com o dinheiro da venda dos doces. E vendia pouco. Parece um tanto quanto paradoxal comparar suas geléias com pastosas pedras preciosas e dizer que quase não tinham saída. Mas esse era o preço da sua outra fama, a que tinha além de doceira. O preço que boicotava o lucro com as geléias, encarecendo-as.
Seus fregueses, em sua suma maioria, ou melhor, todos eles, eram de outros bairros, muitas vezes distantes do Tucurumin. Muitos apareciam uma vez só, outros eram gente muito esquisita. E assim Dona Criméia garantia o seu pão e suas contas em dia, contas de baixo valor, pois era viúva há 15 anos e morava sozinha.
Teve, durante seus anos demarcados pela rinsagem em seu cabelo, no total um noivo e dois maridos. O noivo era mineiro, e como todo bom mineiro, tinha aquele gosto culinário clichê: adorava queijo! E Dona Criméia fazia goiabada desde menina, um dos primeiros doces que aprendeu a fazer. Era um casal perfeito, Rodolfo, o queijo, e Criméia, a goiabada. O Romeu e Julieta do Tucurumin! Formavam, de fato, um lindo casal. Mas, pelos percalços da vida, Rodolfo apareceu morto em seu quarto, sem causa aparente para a morte. Tinha apenas vinte e três anos. Criméias, que ainda não era Dona, recuperou-se rápido da perda do noivo, e seguiu sua vida, sempre aprendendo novas receitas de doces.
Muito tempo se passou até Dona Criméia conhecer Baltazar, que foi seu primeiro marido. Era um casal harmonioso, nada podia-se falar deles. Ela era totalmente devota ao marido, tratava-o com total naturalidade e sem nenhum ressentimento, mesmo depois de descobrir o caso que Baltazar mantinha com Lolinha, uma menina de dezessete anos. Porém, devido à efemeridade da vida, Baltazar é encontrado morto, sentado na privada de sua casa. Dona Criméia chorou dias a morte do marido, foram anos de convivência e devoção. Mas depois de algum tempo, agora viúva, continuou com seus doces.
Foi solitária durante anos, até que um dia, quando comprava frutas no mercado municipal, conheceu Jacques Rudoblier, um homem de mais ou menos quarenta e sete anos, filho do duque francês Dumond Rudoblier, que embora falido, possuía um sobrenome de peso, e a falência era algo que Jacques nunca, nunca citava. Amor à primeira vista soa meio estranho, quando se retrata a vida de uma senhora de seus setenta, ou mais, anos, mas foi o que aconteceu entre Jacques e Dona Criméia na época. Apaixonaram-se, casaram-se e agora Dona Criméia assinava o sobrenome Rudoblier. Criméia da Conceição Soares Rudoblier. Depois do casamento passou a morar no bairro Santa Marta, caracterizado como de classe média alta, ou nem tanto. Pela primeira vez saira dos redutos do Tucurumin.
Eram bastante felizes e adoravam dar festas; até que, no aniversário em que comemoravam os cinqüenta anos de Jacques, o mesmo é encontrado boiando em sua piscina, algum tempo depois dos Parabéns. Viúva pela segunda vez, Dona Criméia volta para a casa onde morava, no Tucurumin, e torna a fazer doces para sobreviver. Dessa forma permaneceu até hoje.
Num dia nublado, de agosto talvez, Lourdes Espíndola, que vê sorte e essas coisas, estava a varrer sua calçada quando vê o novo carteiro do bairro bater palmas no portão de Dona Criméia.
- Pois não? – ela atendeu com sua simpatia nata. Lourdes percebeu, mesmo de longe, um brilho diferente no olhar do carteiro, ao ver Dona Criméia. Coçou atrás da nuca, desviou o olhar da direção da vizinha, e continuou varrendo a sua calçada.


Texto de: Angélica Paraizo

3 comentários:

Anônimo disse...

A doceira assassina uhulll

Anônimo disse...

Discípulas de LFV !! viva ahahaha alegria,alegria ..

Clarice Silvestre disse...

Parei aqui por acaso e me chamou a atenção o conto!
Gostei!