sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Cacos de Vidro

Simples!
Foto: Alan Bigeli

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Pela janela do carro, eu vejo tudo enquadrado



"Panaméricas

De Áfricas utópicas

Túmulo do samba

Mais possível novo

Quilombo de Zumbi

E os novos baianos passeiam

Na tua garoa

E novos baianos te podem

Curtir numa boa..."

(Sampa - Caetano Veloso)



Foto por: Angélica Paraizo

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Sob Lírios e Rosas


Ainda morava na cama e não trazia planos de se desfazer daquela mesma posição em que se recolhera. Espalhada e perdida em cabelos negros e volumosos como uma cachoeira inteiriça e de trabalho incessante. O rádio-relógio apitou duas vezes e, com suas horas vermelhinhas, fez sinal para que se levantasse, mas deixou que o rádio-relógio fosse relógio e apitasse seu movimento. Sócrates já o teria desligado, pensava. E nesse pensar uma tristeza fria veio arrepiar os braços e arrancá-los de seu descanso para perto do corpo. O cheiro dele ainda morava ali todo. Nos lençóis, na tapeçaria, nos quadros, nos corredores e, pior, o cheiro dele morava em seus pulmões como uma gripe forte que destrói o olfato. E no cheiro ela lembrou daquela tarde em que foram ver o apartamento. O corretor passeava com o eco dos cômodos vazios e ela se perdia na imensidão que era a vista do décimo quinto andar. Sócrates indagava a água, a energia, o condomínio, os condôminos enquanto ela desenhava as cores com que faria, os espelhos onde poria, as rosas. Ele veio por trás de seu pensamento e beijou sua nuca sussurrando “é este, benzinho”... Tornou e beijou-o, beijou, beijou os olhos, as mãos, o pescoço e roçou a barba, não cabia mais. E voltaram os dois ainda com o cheiro de tinta fresca na cabeça... O cheiro, o cheiro mudara. O cheiro e as cores, as posições dos móveis, a locação dos cômodos, a direção dos olhos, a evasão dos beijos. O sol despejou uma flecha pela janela que deixava a luz inteira em seus olhos: massa branca cegou-a, mexeu-se enfim. E quedou-se assim: girou o corpo no lençol e ficou atravessada na cama, aprovou o som que os lençóis fazem ao se tocar. E, como não caber, a cabeça pendeu à borda da cama e agora via o mundo de cabeça pra baixo. As pombas cortavam a janela e não faziam sentido, nadavam no ar e agitavam suas asas ao revés. As pombas são incríveis, pensava. Ainda invertida, a cortina se agitava para baixo, o lustre pendia para cima, os quadros tornavam-se ainda mais surreais, os chinelos ainda à espera pela resposta pé. Podia ficar assim o resto do dia, nada de banho ou comida, ficaria ali com aquela luz e aquelas poucas coisas sem sentido. Nada fez muito sentido, ele bateu a porta com uma força tremenda que as asas penduradas por detrás desabaram, e ainda estavam no chão. Se tivesse havido alguma pergunta, algum tapa, talvez sentido fizesse a mais, mas sentido, sentido não há. Concluía invertida: as rosas, que outrora davam vida à transparência do vaso, deixavam-se pesar em seus galhos frouxos, dando lugar a lírios brancos, enormes e vistosos. Morte é que tomara lugar. Foi-se embora a lembrança de bons dias futuros. Embora foi o tempo, junto com ele. Ainda cega pela luz, foi tomada por um impulso estranho que pô-la de pé. Perdoem minha nudez, pensava em direção à cidade. E, deixando que o chão frio acordasse cada parte de seu corpo, foi assim ao banheiro. Ainda na água fria de ontem, deixou seu corpo esguio imergir na banheira e fazer com que soçobrasse uns litros no azulejo branco e de reluz. Sócrates esquecera a toalha, ela tão cheirosa de seu suor de dono de livraria. E fugia pro passado agora... Havia saído correndo da faculdade, tentava chegar antes de fechar a livraria que trazia o nome de um filósofo e futuro homem de seus sonhos. Os funcionários recolhiam e organizavam os livros remexidos pelos leitores assíduos e não pagantes. A porta de vidro separava-a daquela imensidão de letras, a porta de vidro e uma placa que renegava à entrada. Fez cara chorosa, havia suado muito até ali, arfava sem vergonha de abusar dos pulmões e barulhar. Encostou a cara no vidro e ouviu um “assim você vai manchar minha loja inteira [risos], brincadeira”. Explicou-se e falou do quanto era urgente e de que vinha à compra de “Os prazeres e os dias” para resenhar sobre uma festividade promovida em memória do francês Marcel Proust. Sócrates faria aquilo de qualquer jeito, com ou sem explicação, e assim deu passagem à moça e apontou a última prateleira no segundo corredor. Ela agarrou-se ao livro e, em direção ao caixa, pôs seus materiais no balcão enquanto fuçava a mochila atrás do dinheiro. O homem que abrira a porta afirmou, para tristeza da moça, já haver fechado o caixa. Mas dito assim, apossou-se de uma caneta e olhando-a bem dentro a ponto de silenciá-la e fazê-la parar ele pôs a mão no livro, cabisbaixou e desenhou na contracapa: “Às mãos da moça, cujo nome nem sei, passo com indomável alegria a chave para que ela se perca dentro de sua própria inocência. Sócrates”. Aquelas mãos firmes de homem que lia fechavam a capa e giravam o rosto e os olhos lassos do escritor francês que estampavam o livro. Empurrava-o e fazia com que ela lesse. Fez menção de devolver e sair dali correndo, mas deixou-se enrubescer, enlargueceu um sorriso e disse: Liz, eu me chamo Liz. Dali para o café, para os livros, para os planos, para a banheira. Abraçou a toalha e afundou n’água. Arregalou os olhos e foi sentindo a sua plenitude sendo envolvida pela água como um cobertor, chorava agora. Ninguém a via, nem se a vissem apontariam choro. Chorava afundada, chorava fundo. Aos pulmões faltou ar e ela tornou a superfície. Pôs os pés pra fora e despertou para o frio que fazia àquela hora. Deixou que as extremidades ficassem roxas e, então, levantou-se. Deixou a toalha azul afundada e bordada no fundo da banheira. Abraçou rapidamente um roupão e caminhou nas pontas até o quarto. Abriu a janela e deixou que o vento invadisse fortemente o quarto, deixou que o vento arrancasse o cheiro que ousava habitar por ali, permitiu ao vento o direito de arrumar os lençóis, abrir seus braços e alongar as costas a ponto de deixar cair o roupão e se revelar uma mulher nua enfrentando as coisas só dos homens. Foi tomada por um medo, medo de cair. Quem mais a notaria senão Sócrates? Agora era a vez dele chegar por trás e abraçar suas fraquezas, carregá-la frágil e deitar sua nudez na cama ainda cheirando a noite de ontem. Mas ele não viria. E mais, a noite de ontem foi desconexa demais. Chegou mais cedo, viu-a na banheira, atravessou para o quarto. Arrancou uma mala grande do guarda-roupa e, dele também, foi retirando o que guardava. Foi pondo tudo na mala. Surpresa pelo barulho ela ergueu-se e recostou à porta apenas a olhá-lo. Ele estava impenetrável. Mala pronta, ele veio e apenas olho-a fundo, como da primeira vez, mas uma primeira vez reversa. Assim, olhou-a bem fundo e aquilo valeu qualquer explicação. Do bolso ele retirou um papel que pôs atrás do espelho, espelho gigante aquele. E bateu a porta. Não houve “mas”. No fundo ela sabia os motivos não precisou ter bilhetes, em verdade sabia, mas dessabia. Não queria saber e preferiu aceitar como um desencaixe, uma confusão. E foi à cama. Não ao espelho. Noite... Nua, à janela, voltou num suspiro e lembrava do espelho. Armou-se de um pente que recostava no criado-mudo e partiu para ver-se. Toda claridade revelava sua nudez explícita, mulher feita em peitos, curvas e flor. Alisava os cabelos e sentia-os entre os dedos como cavando. Penteava-os e sentia o seu molhar. Seus cabelos eram mesmo lindos e cobriam seus seios redondos. Desfez-se do pente e foi ao bilhete. Antevia as letras de Sócrates desenhadas como a dois anos antes. E ao desdobrar via os lírios recobrirem as rosas, via-os através do espelho: desarmavam a cama e chegavam ao teto. Pelo espelho achava absurdo, mas via-os, os mesmos, virem da janela, do banheiro e povoarem o quarto por inteiro. Chega à última dobra e lê “Perdão, você”. Perdida e tomada de uma tontura imensa deixou ir-se ao chão. Havia ali um cheiro forte que trancara a porta por fora e botara fora a chave. A ela restou aquele metro quadrado cerrado por uma barreira surda e cega que se recusa a passagem. Em nada pensava mais, nada de explicações. Deixou-se chão e cansada de tudo. Um cansaço das coisas que... Vinha uma calma... Calma imensa... Parece sono agora, parece. Aparece, aparece, apa... e sono.

O rádio-relógio havia apitado duas vezes...


Felipe Benevides



P.S.
  1. Fiz sem parágrafos pois é o que penso haver no que pensamos: um não-parágrafos, esse fluxo. Foi com esse que recebi um prêmio de prosa aqui em Salvador. Obrigado pela atenção dispensada.
  2. A foto é minha.