quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Os Dias em Proust


Quanto às lembranças de minha infância resta o fato de tê-las esquecido, exceto a memória de um sapato perdido na lama, dos rabiscos em giz nas paredes, do canto fugidio das cigarras, do odor da chuva sobre a terra. Ou logo depois de mudar para o asfalto, para as ruas afastadas do sítio, a descoberta das raparigas ociosas em seus saltos e a cor escarlate de seus lábios, das pessoas “encimentadas”, da virilidade dos homens e da fumaça sobre as telhas daquelas casas pouco vazias. Tudo aquilo me fez conhecer o ritmo frenético das horas urbanas e do quanto eram vulgares todas aquelas paisagens. Mas logo depois me veio o hábito de conviver ali, tão perto do “mundo”.
De repente, tudo isso era fugaz e tudo estava predestinado ao esquecimento, quando entrei nas primeiras páginas de “No Caminho de Swann”, a nascente da obra do francês Marcel Proust, que agora matizava com suas paisagens, as cores das tardes em que eu me punha a lê-lo. Era Em Busca do Tempo Perdido [À la recherche du temps perdu], em seu primeiro volume dos sete livros, que encerrava ali a minha memória para seguir os enleios proustianos.
Sim, poderia ser um encerramento, pois aquele que se dedicou 20 anos de labor ininterrupto a esta obra, não poderia deixar algo de útil daquilo que fosse meu, sequer um sobejo de.
Encontrei a velha Combray, cidade onde são narrados os dias da infância do narrador e de suas buscas pelo tempo. Os laços frouxos da burguesia posta em seus salões, os homens extasiados em prazeres mundanos, faziam da narrativa a memória involuntária de Proust, desde os nove anos acometido pelas inflamadas dores da doença que o acompanharia até os dias de sua morte: a asma.
As passagens de “No Caminho de Swann” confundem o narrador e o escritor, trazendo à margem dos parágrafos a memória do filho da burguesia parisiense do século XX, a clausura de si, a criança cercada pela proteção materna, a vida doentia que o abreviara aos 57 anos, sem ver a maior parte de sua obra sendo publicada.
Depois de perder sua mãe, Proust decide trancar-se num quarto com paredes forradas de cortiças, para diminuir o barulho que vinha das ruas - agora tão vazias de sua presença - mesmo nos cafés, onde era costumeiro vê-lo transitar.
Apesar das frivolidades urbanas de Paris, que vivenciava a manifestação de fin-de-siècle, em sua avalanche do mundo moderno, Proust não infiltrou em sua obra estas descobertas do novo século e suas mudanças, pois não estava à mercê das máquinas e de suas possibilidades. Apenas deixou-se imprimir nas quatro mil páginas que compõem a Recherche. Deixou-nos seu olhar ao tempo, sua idéia de perda ao mundanismo, de ceticismo à natureza humana e engendrou-se nele mesmo para emprestar-nos nas três mil páginas páginas a própria vida, para mostrar-nos a perda de si e dos outros.
Decerto, ao fim daquelas páginas estava a descoberta desordenada dos dias, a incoerência das horas e, a única maneira para recuperar aquele tempo era negar-me a ele.



cleiltonsilva

7 comentários:

Anônimo disse...

Esse moço é bom mesmo. Texto digno a uma orelha, as duas de um mesmo livro. Vi que Paris é muito mais transcendental do que imaginava. Ela tem pernas através dos parágrafos de seus cantadores, esses que conectam os corações perdidos e fazem nevar no sertão. Os Dias, as horas, o tempo, tempo, tempo, tempo... E os prazeres! Proust nasceu pra ser Proust e ser lido assim, sempre. De sua lápide deve brotar um musgo de felicidade ao receber palavras tão conexas e verdadeiras. Ave!

Anônimo disse...

Esta sendo muito interessante esse intercâmbio de culturas no blog.Olha,Cleiton,eu tenho que te confessar que ainda não conhecia Proust ,mas o seu prévio comentário acerca dele me fez ter vontade de ler sobre ,até porque ter uma visão do que ele significa para você,que, por sinal,escreve tão bem quanto o Felipe ,é como um impulso a ler e descobrir o que te levou a pensar sobre ele dessa maneira .Valeu !!!

cleilton silva disse...

Felipe, agradeço por suas palavras e do quanto elas me silenciosas [adorável silêncio] e doces.

Abraço.

cleilton silva disse...

Manu, o que posso dizer é que Proust não se abrevia, não se pode falar dele sem cair no ridículo e eu o fiz. Ele é inesgotável. Suas cores ainda meio pálidas são demasiadamente encantadoras. Por sinal, Guimarães trancou-se num quarto e não permitiu entrar ninguém lá até que ele o lesse.
Leia-a, leia-o e leia-o.

Obrigado pelo comentário.

Anônimo disse...

Eu não sei o porquê mas pelo seu comentário algo me lembra Raul Pompéia ... Quero reler para descobrir isso !!

Anônimo disse...

Sua escrita é um céu de palavras, luz que dá vida a pensamentos, a lúcidos sentimentos. Enigmas semeados em solo árido, brotam miragens e as imagens que cultivo na minha mente as reconhecem. Ouço em silencio o que dita a tua alma em teus escritos. por isso creio não estar "encimentado". Porém, não abandones ao esquecimento o universo à sua volta, pois, as "nossas vulgares paisagens" precisam ser cantadas, como as cantou Rosa.
Um grande abraço.
Inamar Coelho

Isabella disse...

É, só posso dizer que num dia de felicidade extrema me agarrei com "À sombra das raparigas em flor" e dormi com o livro ao lado do travesseiro. E num dia de extrema infelicidade, chorei com "Um amor de Swann',pois afinal de contas tudo se reduz aos sinos da igrejinha de Combray, longamente silenciados pela vida, resgatados em forma de escrita, se assim o quisermos, como nos sugere o Narrador.