sábado, 4 de agosto de 2007

Eu estive no Baixio das Bestas

(ParÊnteses - apresentação): Sou novo por aqui. Agradeço pelo espaço, espero ser bem quisto. Obrigado pela atenção, senhores:

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:
Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas, e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores:
E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,
Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.
Bocage
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Falando, abertamente, sobre o filme "Baixio das Bestas" de Cláudio Assis

“Terra que não aparece
Neste mapa universal
Com outra; ou são ruins todas
Ou ela somente é má”
- Gregório de Matos –

Credito a Cláudio Assis o estandarte de “Boca do Inferno” de nossos tempos. Cheguei à Sala de Arte arfando, depois de um pique para não perder o horário, mas entrei a tempo de ver as luzes sendo apagadas. Abre a cena e somos estapeados com 1h20 de miséria, miséria, miséria humana nas telas. “A usina vai devorar nós todos”. Vai sim, como a fossa cavada ao lado da casa que em breve será a cova, em breve. Vi “Amarelo Manga” faz dois anos e pude abrir os olhos para a cena cinematográfica de Pernambuco, conheci o menino Cláudio xingando o mundo e seus “podres poderes”, mas foi depois de ter visto “Baixio das Bestas” que pude sentir a acidez natural de suas palavras-imagens. Numa terra de ninguém, onde manda quem pode e obedece quem tem juízo, vemos traçado o círculo do mundo. A vida circular que torna ao mesmo ponto, chegando ao máximo numa involução desordenada. É um filme de grandes caricaturas de nossos dias. O velho asqueroso que expõe sua neta de 13 anos aos urros de caminhoneiros, vestindo esse uma capa de moralista, mas que em tese seria alvo das próprias críticas. A vontade que nutrimos em todo o filme é que o velho (seu Heitor) seja queimado junto com a cana pra ver se com ele ia junto o “câncer do mundo”, mas ele não é o mal sozinho. Em verdade, o filme não expõe uma visão maniqueísta. O que vemos é a paisagem mal cheirosa do mundo, a podridão do Sistema (o latifúndio do filme). Nesse (sub)mundo temos um cinema abandonado onde Cícero e seus amigos fumam, bebem, masturbam-se, estupram e matam, afinal: “No cinema tu pode fazer o que tu quer”. Esta frase, ambígua e metalingüística, é dita ao espectador de maneira crua e em quebra à 4ª parede. O filme é mesmo assim: barroco-realista. Cícero, filho de afamada família de fazendeiros, mora em Recife (centro-urbano próximo àquela paragem, suposto ponto de desenvolvimento humano e esperança de riqueza e prosperidade) e nutre por Auxiliadora (nome sugestivo à posição de auxílio-renda que a menina assume na casa do avô) uma paixão desmedida, inerente à condição em que a menina se encontra. Em suas mãos passa a decisão pelo futuro de Auxiliadora, mas há ainda o velho que não abrirá mão de seu ganha-pão. Travada a quebra de braço [subtendida] vemos a verdade: não há futuro, não há saída por ali. Ainda nesse vilarejo cravado em meio à cana-de-açúcar funciona um bordel. As mulheres ressacadas compartilham seus prazeres e desgraças num mesmo “ali” sem dono. Há quem sonhe com um “futuro”, há, mais ainda, quem aceite o fardo e se deixe passiva à realidade mal fundada. Mulheres carecas, mulheres peitudas, mulheres cansadas, mulheres gozadas, mulheres-homens, há de tudo e mais um pedaço. Sexo, machismo, maracatu e o decadente sistema latifundiário de extração da cana completam o cenário do filme. Será que precisamos ir tão longe para enxergar o que Assis nos fala? São anos de decadência, anos de podridão, o mal-cheiro começa a incomodar e não dá para tapar o nariz e os olhos. Este filme é um grito, um gemido, um aceno: “Olhem-nos, é desgraça demais, abram os braços”. Ele, ainda, nos diz “A pobreza vai socializar o mundo” – há duas maneiras disso ser feito:
- A primeira, já corrente, é através de uma podridão tão coletiva que todos, absolutamente, estarão imersos numa mesma fossa, de maneira gêmea e indissociável.
- A segunda, tardia, é através de um sentimento de não-passividade onde o mal-cheiro [já sentido] incomode e provoque a ação conjunta que socialize o “doar”.
Não sei, não sei, não sei. Saí da sala cansado, foi como uma surra ter visto todas aquelas cores: Uma vitamina de jaca. As atuações são primorosas, a maravilhosa Marcélia Cartaxo (atriz e preparadora do elenco) trouxe o homem-cão às telas. Somos presenteados com a estreante Mariah Teixeira, Matheus Natchergaele (como sempre, dando um banho de grandeosidade artística), Caio Blat (Cama de Gato), Dira Paes (maravilhosa em Amarelo Manga), Hermila Guedes (grande em O Céu de Suely), Conceição Camaroti (sempre autêntica) e muitos figurantes, inclusive o próprio Cláudio. Presenciamos, também, a musicalidade saborosa do "Maracatu Estrela Brilhante".


Em suma: O homem do sertão, do agreste, das Américas, do mundo. O homem-lixo. Asco, asco, asco. Cuspi duas vezes ao sair do escurinho. A vontade que tive foi de aplaudir, mas me acovardei ante os (sete) companheiros de sala. Sugiro a você, leitor, que divida essa interrogação comigo: veja-o.




Termino o filme e o que vejo? Não há saída.(?) Não há nada.
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Felipe Ferreira

6 comentários:

Anônimo disse...

Uau ,que texto bacana,muito enriquecido Felipe ,gostei muito !Me deu vontade de assistir ao filme!! A decadência humana chega a limites inimagináveis.É incrível como o ser humano chega a certos pontos tão cruéis !
Parabéns pelo comentário,muito culto.Eu estou conhecendo o blog agora ,e já me deparei com um belo texto!!!!!!!!!!!

Anônimo disse...

Aeee bela estréiaa !!! A-D-O-R-E-I o comentário... Meu ..muito massa !!!Esse filme me faz lembrar o cortiço ,aquele livro do Aluísio de Azevedo,quero ver o filme ainda com medo de me me decpcionar mais com a humanidade,mas é a realidade né!...O que fazer :(
texto dez !

Anônimo disse...

Aiii, mais um filme de decadência do Brasil eutô me acostumando ,eles gostam de mostrar o submundo,não que o Brasil seja uma maravilha ,mas ,meu,tá na hora de parar de chorar e fazer algo.*

Anônimo disse...

Obrigado pelos comentários!

Anônimo disse...

Me interessei mto pelo filme. Já assisti Amarelo Manga e é um dos meus "filmes de cabeceira". Infelizmente onde moro, vai demorar um pouco para que eu possa ter acesso ao Baixio das Bestas, mas certamente será mais um "filme de cabeceira", devido à sua sinopse!
Ótimo comentário!

cleilton silva disse...

Algumas considerações e pronto! Embrenhamo-nos na curiosidade de assistir a este filme. Curiosidade? Não, seria mais ou menos um convite, pois diante desta expressão que, na verdade é uma impressão, fiquei pasmo. Ou vou ao cinema assistir ou me limito a esquecê-lo para somente devorar este belo artigo que me foi dado. Vou traçando-o a um ambiente pobre e inútil. Até lá, vou relendo as linhas vibrantes e nuas deste escritor ou será não-escritor?[um contador de histórias, que relata o cotidiano de uma xícara suja, de um sexo purulento], que não se dispõe a deixar o “objeto” mais ou menos bonito, mas um pouco feio, a seu modo, é claro.

Parabéns, Felipe!