
(ParÊnteses - apresentação): Sou novo por aqui. Agradeço pelo espaço, espero ser bem quisto. Obrigado pela atenção, senhores:
Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:
Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas, e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores:
E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,
Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.
Bocage
.
.
.
Falando, abertamente, sobre o filme "Baixio das Bestas" de Cláudio Assis
“Terra que não aparece
Neste mapa universal
Com outra; ou são ruins todas
Ou ela somente é má”
- Gregório de Matos –
Credito a Cláudio Assis o estandarte de “Boca do Inferno” de nossos tempos. Cheguei à Sala de Arte arfando, depois de um pique para não perder o horário, mas entrei a tempo de ver as luzes sendo apagadas. Abre a cena e somos estapeados com 1h20 de miséria, miséria, miséria humana nas telas. “A usina vai devorar nós todos”. Vai sim, como a fossa cavada ao lado da casa que em breve será a cova, em breve. Vi “Amarelo Manga” faz dois anos e pude abrir os olhos para a cena cinematográfica de Pernambuco, conheci o menino Cláudio xingando o mundo e seus “podres poderes”, mas foi depois de ter visto “Baixio das Bestas” que pude sentir a acidez natural de suas palavras-imagens. Numa terra de ninguém, onde manda quem pode e obedece quem tem juízo, vemos traçado o círculo do mundo. A vida circular que torna ao mesmo ponto, chegando ao máximo numa involução desordenada. É um filme de grandes caricaturas de nossos dias. O velho asqueroso que expõe sua neta de 13 anos aos urros de caminhoneiros, vestindo esse uma capa de moralista, mas que em tese seria alvo das próprias críticas. A vontade que nutrimos em todo o filme é que o velho (seu Heitor) seja queimado junto com a cana pra ver se com ele ia junto o “câncer do mundo”, mas ele não é o mal sozinho. Em verdade, o filme não expõe uma visão maniqueísta. O que vemos é a paisagem mal cheirosa do mundo, a podridão do Sistema (o latifúndio do filme). Nesse (sub)mundo temos um cinema abandonado onde Cícero e seus amigos fumam, bebem, masturbam-se, estupram e matam, afinal: “No cinema tu pode fazer o que tu quer”. Esta frase, ambígua e metalingüística, é dita ao espectador de maneira crua e em quebra à 4ª parede. O filme é mesmo assim: barroco-realista. Cícero, filho de afamada família de fazendeiros, mora em Recife (centro-urbano próximo àquela paragem, suposto ponto de desenvolvimento humano e esperança de riqueza e prosperidade) e nutre por Auxiliadora (nome sugestivo à posição de auxílio-renda que a menina assume na casa do avô) uma paixão desmedida, inerente à condição em que a menina se encontra. Em suas mãos passa a decisão pelo futuro de Auxiliadora, mas há ainda o velho que não abrirá mão de seu ganha-pão. Travada a quebra de braço [subtendida] vemos a verdade: não há futuro, não há saída por ali. Ainda nesse vilarejo cravado em meio à cana-de-açúcar funciona um bordel. As mulheres ressacadas compartilham seus prazeres e desgraças num mesmo “ali” sem dono. Há quem sonhe com um “futuro”, há, mais ainda, quem aceite o fardo e se deixe passiva à realidade mal fundada. Mulheres carecas, mulheres peitudas, mulheres cansadas, mulheres gozadas, mulheres-homens, há de tudo e mais um pedaço. Sexo, machismo, maracatu e o decadente sistema latifundiário de extração da cana completam o cenário do filme. Será que precisamos ir tão longe para enxergar o que Assis nos fala? São anos de decadência, anos de podridão, o mal-cheiro começa a incomodar e não dá para tapar o nariz e os olhos. Este filme é um grito, um gemido, um aceno: “Olhem-nos, é desgraça demais, abram os braços”. Ele, ainda, nos diz “A pobreza vai socializar o mundo” – há duas maneiras disso ser feito:
- A primeira, já corrente, é através de uma podridão tão coletiva que todos, absolutamente, estarão imersos numa mesma fossa, de maneira gêmea e indissociável.
- A segunda, tardia, é através de um sentimento de não-passividade onde o mal-cheiro [já sentido] incomode e provoque a ação conjunta que socialize o “doar”.
Não sei, não sei, não sei. Saí da sala cansado, foi como uma surra ter visto todas aquelas cores: Uma vitamina de jaca. As atuações são primorosas, a maravilhosa Marcélia Cartaxo (atriz e preparadora do elenco) trouxe o homem-cão às telas. Somos presenteados com a estreante Mariah Teixeira, Matheus Natchergaele (como sempre, dando um banho de grandeosidade artística), Caio Blat (Cama de Gato), Dira Paes (maravilhosa em Amarelo Manga), Hermila Guedes (grande em O Céu de Suely), Conceição Camaroti (sempre autêntica) e muitos figurantes, inclusive o próprio Cláudio. Presenciamos, também, a musicalidade saborosa do "Maracatu Estrela Brilhante".
Em suma: O homem do sertão, do agreste, das Américas, do mundo. O homem-lixo. Asco, asco, asco. Cuspi duas vezes ao sair do escurinho. A vontade que tive foi de aplaudir, mas me acovardei ante os (sete) companheiros de sala. Sugiro a você, leitor, que divida essa interrogação comigo: veja-o.
Termino o filme e o que vejo? Não há saída.(?) Não há nada.
?
?
?
Felipe Ferreira