sábado, 26 de abril de 2008

o salto




A Felipe Benevides




Foi como tocar nos parágrafos antecipadamente. Arlinda, Arlinda, meu amor, adeus. Riu com todos os dentes amarelos, quase apodrecidos de amar os outros. Era nisso que ela cria. O amor não resiste ao tempo, Arlinda. E quanto amor trazia aqueles dentes corroídos pelo afeto outrado? Quantas candeias soube acender para alumiar um sentimento não-seu? Coração-escuro Arlinda escureceu-se. Matava a fogueira com águas quentes, como para não doer às feridas alheias. Que insano e desmesurado cuidado para os lírios não morrerem. Aqueles muros não pertencem a ti, Arlinda! Guarda os teus tijolos para sombrear as tuas dores, pois não há casa para as tuas feridas. Guarda as facas para tua solidão ou deixe-as atadas aos teus pulsos exangues, deixa que os outros podem seus próprios espinhos..Imaginava uma casa. Uma varanda de portas surdas. Um silêncio brutal trepado nas laranjeiras. Não, não havia outras laranjeiras no quintal. Apenas uma. Por fora, a flor e a cal sobre suas raízes. Por dentro: Arlinda. Ela soube morrer aos poucos, sem saber lavar os panos sujos que vestiam suas pernas, seus braços, sem deixar as flores morrerem no asfalto. Arlinda regava sementes no asfalto. Arlinda não possuía flores nem sementes. Quando nossos sonhos foram sepultados no interior das paredes, ela passou a pintá-las, como se para todos os dias, fosse um cuidado necessário deixar a nossa morte colorida. Fure teus olhos, meu amor, o espelho são os outros. Quebra-o e coteje aqueles estilhaços. Deus é um vidro colorido e inútil, joga-o pela janela para que ele morra em qualquer esquina, onde morrem os pintalgados travestis pretos. Deixa que ele role pela ladeira para cortar os pés dos peregrinos que não o vêem de tão cegos. Permita que ele quede sobre as velas antes que a fé se liquefaça e afogue-nos É somente pela parte inviável que sucede o amor, alheio às costumeiras facilidades, ao vício que se alastra sofregamente pelo afeto efêmero dos homens. É ele fogo-fátuo, invisível, que se apagará com a próxima chama, surgida no desejo. Todos os anseios daqueles que amam e que sofrem a falta, que convalescem na pós-presença, pela ausência de um abraço, morrerão como as fotografias velhas. Mas a parte desigual, separada por um abismo cujo mistério não se sabe, nascerá perpetuamente tangida ao não-fim. Mesmo que tenha restado pouca saudade, é dele que o coração lembrará, quando se equilibra aquilo que sabemos que não há peso algum: o nosso amor. O amor real, perene em seu curso, pouco existe além de sua essência, mas dele pouco soube Arlinda, quando, canhestramente, tentava desvelar, sem saber que ele estava no que lhe sobrava: a ausência. Seca o meu sangue que já se derrama no asfalto e beije-o, rega as minhas flores antes que elas nasçam podres, conceda-me a dor de encharcar as tuas raízes e permita que eu ame os teus vazios.


cleiltonsilva

Um comentário:

Jones Mota disse...

Olá. Admirei-me por tantas tentativas...

muitas, certas.

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