quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Sob Lírios e Rosas


Ainda morava na cama e não trazia planos de se desfazer daquela mesma posição em que se recolhera. Espalhada e perdida em cabelos negros e volumosos como uma cachoeira inteiriça e de trabalho incessante. O rádio-relógio apitou duas vezes e, com suas horas vermelhinhas, fez sinal para que se levantasse, mas deixou que o rádio-relógio fosse relógio e apitasse seu movimento. Sócrates já o teria desligado, pensava. E nesse pensar uma tristeza fria veio arrepiar os braços e arrancá-los de seu descanso para perto do corpo. O cheiro dele ainda morava ali todo. Nos lençóis, na tapeçaria, nos quadros, nos corredores e, pior, o cheiro dele morava em seus pulmões como uma gripe forte que destrói o olfato. E no cheiro ela lembrou daquela tarde em que foram ver o apartamento. O corretor passeava com o eco dos cômodos vazios e ela se perdia na imensidão que era a vista do décimo quinto andar. Sócrates indagava a água, a energia, o condomínio, os condôminos enquanto ela desenhava as cores com que faria, os espelhos onde poria, as rosas. Ele veio por trás de seu pensamento e beijou sua nuca sussurrando “é este, benzinho”... Tornou e beijou-o, beijou, beijou os olhos, as mãos, o pescoço e roçou a barba, não cabia mais. E voltaram os dois ainda com o cheiro de tinta fresca na cabeça... O cheiro, o cheiro mudara. O cheiro e as cores, as posições dos móveis, a locação dos cômodos, a direção dos olhos, a evasão dos beijos. O sol despejou uma flecha pela janela que deixava a luz inteira em seus olhos: massa branca cegou-a, mexeu-se enfim. E quedou-se assim: girou o corpo no lençol e ficou atravessada na cama, aprovou o som que os lençóis fazem ao se tocar. E, como não caber, a cabeça pendeu à borda da cama e agora via o mundo de cabeça pra baixo. As pombas cortavam a janela e não faziam sentido, nadavam no ar e agitavam suas asas ao revés. As pombas são incríveis, pensava. Ainda invertida, a cortina se agitava para baixo, o lustre pendia para cima, os quadros tornavam-se ainda mais surreais, os chinelos ainda à espera pela resposta pé. Podia ficar assim o resto do dia, nada de banho ou comida, ficaria ali com aquela luz e aquelas poucas coisas sem sentido. Nada fez muito sentido, ele bateu a porta com uma força tremenda que as asas penduradas por detrás desabaram, e ainda estavam no chão. Se tivesse havido alguma pergunta, algum tapa, talvez sentido fizesse a mais, mas sentido, sentido não há. Concluía invertida: as rosas, que outrora davam vida à transparência do vaso, deixavam-se pesar em seus galhos frouxos, dando lugar a lírios brancos, enormes e vistosos. Morte é que tomara lugar. Foi-se embora a lembrança de bons dias futuros. Embora foi o tempo, junto com ele. Ainda cega pela luz, foi tomada por um impulso estranho que pô-la de pé. Perdoem minha nudez, pensava em direção à cidade. E, deixando que o chão frio acordasse cada parte de seu corpo, foi assim ao banheiro. Ainda na água fria de ontem, deixou seu corpo esguio imergir na banheira e fazer com que soçobrasse uns litros no azulejo branco e de reluz. Sócrates esquecera a toalha, ela tão cheirosa de seu suor de dono de livraria. E fugia pro passado agora... Havia saído correndo da faculdade, tentava chegar antes de fechar a livraria que trazia o nome de um filósofo e futuro homem de seus sonhos. Os funcionários recolhiam e organizavam os livros remexidos pelos leitores assíduos e não pagantes. A porta de vidro separava-a daquela imensidão de letras, a porta de vidro e uma placa que renegava à entrada. Fez cara chorosa, havia suado muito até ali, arfava sem vergonha de abusar dos pulmões e barulhar. Encostou a cara no vidro e ouviu um “assim você vai manchar minha loja inteira [risos], brincadeira”. Explicou-se e falou do quanto era urgente e de que vinha à compra de “Os prazeres e os dias” para resenhar sobre uma festividade promovida em memória do francês Marcel Proust. Sócrates faria aquilo de qualquer jeito, com ou sem explicação, e assim deu passagem à moça e apontou a última prateleira no segundo corredor. Ela agarrou-se ao livro e, em direção ao caixa, pôs seus materiais no balcão enquanto fuçava a mochila atrás do dinheiro. O homem que abrira a porta afirmou, para tristeza da moça, já haver fechado o caixa. Mas dito assim, apossou-se de uma caneta e olhando-a bem dentro a ponto de silenciá-la e fazê-la parar ele pôs a mão no livro, cabisbaixou e desenhou na contracapa: “Às mãos da moça, cujo nome nem sei, passo com indomável alegria a chave para que ela se perca dentro de sua própria inocência. Sócrates”. Aquelas mãos firmes de homem que lia fechavam a capa e giravam o rosto e os olhos lassos do escritor francês que estampavam o livro. Empurrava-o e fazia com que ela lesse. Fez menção de devolver e sair dali correndo, mas deixou-se enrubescer, enlargueceu um sorriso e disse: Liz, eu me chamo Liz. Dali para o café, para os livros, para os planos, para a banheira. Abraçou a toalha e afundou n’água. Arregalou os olhos e foi sentindo a sua plenitude sendo envolvida pela água como um cobertor, chorava agora. Ninguém a via, nem se a vissem apontariam choro. Chorava afundada, chorava fundo. Aos pulmões faltou ar e ela tornou a superfície. Pôs os pés pra fora e despertou para o frio que fazia àquela hora. Deixou que as extremidades ficassem roxas e, então, levantou-se. Deixou a toalha azul afundada e bordada no fundo da banheira. Abraçou rapidamente um roupão e caminhou nas pontas até o quarto. Abriu a janela e deixou que o vento invadisse fortemente o quarto, deixou que o vento arrancasse o cheiro que ousava habitar por ali, permitiu ao vento o direito de arrumar os lençóis, abrir seus braços e alongar as costas a ponto de deixar cair o roupão e se revelar uma mulher nua enfrentando as coisas só dos homens. Foi tomada por um medo, medo de cair. Quem mais a notaria senão Sócrates? Agora era a vez dele chegar por trás e abraçar suas fraquezas, carregá-la frágil e deitar sua nudez na cama ainda cheirando a noite de ontem. Mas ele não viria. E mais, a noite de ontem foi desconexa demais. Chegou mais cedo, viu-a na banheira, atravessou para o quarto. Arrancou uma mala grande do guarda-roupa e, dele também, foi retirando o que guardava. Foi pondo tudo na mala. Surpresa pelo barulho ela ergueu-se e recostou à porta apenas a olhá-lo. Ele estava impenetrável. Mala pronta, ele veio e apenas olho-a fundo, como da primeira vez, mas uma primeira vez reversa. Assim, olhou-a bem fundo e aquilo valeu qualquer explicação. Do bolso ele retirou um papel que pôs atrás do espelho, espelho gigante aquele. E bateu a porta. Não houve “mas”. No fundo ela sabia os motivos não precisou ter bilhetes, em verdade sabia, mas dessabia. Não queria saber e preferiu aceitar como um desencaixe, uma confusão. E foi à cama. Não ao espelho. Noite... Nua, à janela, voltou num suspiro e lembrava do espelho. Armou-se de um pente que recostava no criado-mudo e partiu para ver-se. Toda claridade revelava sua nudez explícita, mulher feita em peitos, curvas e flor. Alisava os cabelos e sentia-os entre os dedos como cavando. Penteava-os e sentia o seu molhar. Seus cabelos eram mesmo lindos e cobriam seus seios redondos. Desfez-se do pente e foi ao bilhete. Antevia as letras de Sócrates desenhadas como a dois anos antes. E ao desdobrar via os lírios recobrirem as rosas, via-os através do espelho: desarmavam a cama e chegavam ao teto. Pelo espelho achava absurdo, mas via-os, os mesmos, virem da janela, do banheiro e povoarem o quarto por inteiro. Chega à última dobra e lê “Perdão, você”. Perdida e tomada de uma tontura imensa deixou ir-se ao chão. Havia ali um cheiro forte que trancara a porta por fora e botara fora a chave. A ela restou aquele metro quadrado cerrado por uma barreira surda e cega que se recusa a passagem. Em nada pensava mais, nada de explicações. Deixou-se chão e cansada de tudo. Um cansaço das coisas que... Vinha uma calma... Calma imensa... Parece sono agora, parece. Aparece, aparece, apa... e sono.

O rádio-relógio havia apitado duas vezes...


Felipe Benevides



P.S.
  1. Fiz sem parágrafos pois é o que penso haver no que pensamos: um não-parágrafos, esse fluxo. Foi com esse que recebi um prêmio de prosa aqui em Salvador. Obrigado pela atenção dispensada.
  2. A foto é minha.

4 comentários:

Geli disse...

Lindo texto, com uma sensibilidade incrível!
E mesmo antes de ler suas observações, percebi que a ausência de parágrafos era proposital, pelo texto se tratar de lembranças, pensamentos, momentos. O prêmio foi realmente merecido!
Parabéns pelo belíssimo texto, que ontem, lido por mim de madrugada, me arrancou lágrimas e me causou um enorme sentimento de vazio, mesmo estando cheia!
Expresse-se sempre por aqui! Esse blog anda meio abandonado... A idéia e o sonho inicial era reunir vários "aspirantes à artista" num lugar onde pudessem mostrar a sua arte, seja ela qual for e atrair, cada vez mais, mais e mais gente tanto para fazer parte dessa "associação", quanto para prestigiar o nosso trabalho.
Que possamos retomar essa tentativa!
Abraços.

Anônimo disse...

Realmente Lindo!
Prêmio conquistado com muita competência. Parabéns!
Sem mais palavras apoio o que a Geli disse acima.

Anônimo disse...

Gostei demais. Tanta coisa me é familiar. ‘Sócrates’, ‘cheiro de tinta fresca’ [como em “Gentileza”], ‘massa branca cegou-a’ [como num conto de Estrela], ‘Os prazeres e os dias’, ‘Perdão, você’ [Marisa Monte], ‘Marcel Proust’, ‘Ela agarrou-se ao livro’ [lembrando Clarice em sua Felicidade Clandestina], e no mais tudo é você. Sempre você com todos as cordas enlaçadas em nó difícil de desamarrar. Ah, Felipe quero sem prosa lhe dizer que és tão talentoso. Invejo você. Suas palmas, sua efemeridade, sua voz. Gosto quando quase com desdém diz: “...os chinelos ainda à espera pela resposta pé” . Isto tudo é tão roto. Não sabia do prêmio, mas desde já me aqueço de sua plenitude. Alcançarás o lá. E eu estarei, perto ou longe, com você.
Mais uma vez: Te amo!

- niny lowery :P disse...

faço das palavras da angélica, minhas palavras. ótimo texto, ótimo desenvolvimento. Tu envolves o leitor de uma forma incrível, em momento algum alguém poderia parar de ler o que escreves. parabéns guri :)

beijão ;*